quarta-feira, 12 de junho de 2013

Hoje, aqui.

É preciso confessar minha tendência ao devaneio
Ao exercício da associação espontânea, à enumeração
Caótica de fragmentos, de afetos, memória
De lugares, de cenas, pessoas, objetos postos à margem
É preciso admitir minha coleção de fantasmas
De ossos, assombrações embaixo das camas,
Admitir que não uso camas, não me penteio,
Não passo embaixo de escadas,
Não suporto certos perfumes, e não costumo me barbear,
Embora escove muito os dentes e tome banho
Várias vezes por dia.
É bom lembrar que ainda revivo o dia em que assisti
a um jogo pela TV após chegar de um rodeio
E Walter Casagrande Jr. e Biro-biro
Mostraram a um garoto o que é DEMOCRACIA.
É preciso admitir tendência ao vício
De ficar à noite na rua procurando
Alguém ou o hábito de não voltar para casa
Depois de encontrar.
É preciso aceitar que estraguei meu dedo
E quase minha mão tentando destruir brinquedos
Só para não ter que emprestar a ninguém.
É preciso admitir que me desfiz das cartas
que escrevemos quando estávamos juntos.
É que eu não via sentido ou espaço onde deixar.
É preciso confessar que quase magoei
A coluna de meus amigos pulando em suas costas.
É preciso admitir que quase arruinei
Os estudos de minha mãe.
Que sonhei com cenas terríveis, talvez naufrágios.
Eu, marinheiro, pescador, arruinando navios.
Admito, com vontade de falar alto,
Que li “O Alienista” na fila do emprego.
É absolutamente necessário falar que Éder
É quem tratou bem minha família e que portanto
Ele tem acesso a toda a casa e mesmo aos corações,
Todo o direito anarquista de considerar-se parte disso.
E que Nelson também, e portanto também.
E que minha mãe conhece
Bicelli, que comeu macarrão em nossa casa.
É preciso falar que Douglas e eu desrespeitamos bêbados
Mas nunca desrespeitamos as meninas de madrugada.
E não é preciso falar de amadas,
Senão de Wanderléa, no Municipal,
De Ângela, no Gil, de Andreia em tudo que aconteceu.
De minha parceira de strip-poker nas manhãs de feriados.
E de minha agente secreta sem roupa, num bar
De rock na rua Padre Celestino.
É absolutamente importante lembrar que Ana
Muitas vezes se despe no espelho de minha casa.
Ou nas páginas de seu diário.
É apenas irremediavelmente necessário andar de bicicleta
Com J. Roberto na descida da Augusta, cada um pedalando de um lado.
É necessário ver meninas nascerem, meninas parirem, cantarem
Uma nova canção que escrevi.
É irremediável aceitar o convite de Kléber
Para voltar a Cananeia, onde escrevi o nome dela,
Em tinta de areia e pele.
Onde não tem lugar pra passar a noite.
E somos chamados para as festas.
É simplesmente necessário cantar
Nelson, Luciano, Rogério, Morales,
Willer, Vinicius Gonçalves e de Moraes.
Ouvir Rosane, Iládio e Henrique, Murilo Mendes
Na madrugada, deitar entre os latidos de meu cachorro
E os sorrisos da minha namorada.
É necessário expor poemas no salão, escrevê-los
Em camisetas, grudá-los nos muros
Onde os casais se conheçam, fazer novos musicais
Inspirado em HQs, máquinas retificadoras e Beatles.
É preciso ler, ver, ouvir Lourdes recitar Torquato
Ou Leminski de madrugada, Lilia Loman para a chuva,
E minha amiga Picoli para a pedra molhada, em Ibiúna.
Poemas concretos ou surreais para a casa abandonada na fazenda.
É preciso, antes de tudo, amar Castelo Hanssen.
É preciso admirar, desejar, querer, e muito, e bem, ao tango argentino
De minhas namoradas passadas, todas reunidas no silêncio de Ana.
No seu corpo suado de jogadora de vôlei, que somente ela tem
Aquele cheiro.
E que jogador de capoeira nenhum, lutador de boxe, tem coragem
De amar como se deve, à maneira de um leão, ou macaco ou
Elefante, à maneira de um bêbado, de um nascer
Do sol na Praça da República, em um apartamento da Ipiranga
Ou por trás de uma montanha de cobertores e copos
Espalhados pelo quarto, vibrando ecoando nossa risada.
Assim a vida se descobre sonho.
Pois não dançamos poemas neste pedaço latino-americano
Do planeta? Assim percorro, estrangeiro e só,
Por essas alamedas de memórias e sonhos.


(Wagner Lopes Pires)

2 comentários:

  1. Meu amigo tua vida é bela, o que me remete à Roberto Benigni,tu não és cineasta mas conta imagens através de poemas... O amo, sobretudo pela simplicidade em ser tão complexo e humano e extraterrestre! Fiquei com pena de mim por ter tão pouco tempo para estar contigo. Me fizeste pensar e provar um gostinho de inveja(mas já regurgitei ao modo pássaro que significa amor e cuidado). Espero que percebas tanto quanto eu, lendo-o, o quanto és rico. Beijos daqui do espelho. rs

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  2. Há uma frase na abertura do filme "The Doors" que é algo como "sua vida foi boa o bastante para fazer um filme?". Acho que as nossas são, para filmes, livros, poemas. Adoro você, Ana. Beijos!

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